
   Levantado do Chão
Há quem  tenha o  sono pesado,  há quem  o tenha  leve, há quem ao
adormecer se  despegue do  mundo, há quem não saiba estar senão deste
lado e  por isso  sonha. Diremos  que Joana Canastra é consoante. Possa
ele dormir em seu sossego, é o caso de quando está doente, se as dores
não doerem  demasiado, e  aí fica  no jeito  que lhe  ficou do berço,
diria  quem   de  então  a  conheceu,  a  face  sobre  a  mão  aberta,
moreníssima e  cansada, no  mais longo  e profundo  sono.  Mas  se  tem
cuidados, e  os cuidados  hora certa,  quinze minutos antes dela abre os
olhos bruscamente,  como  se  obedecesse  a  um  mecanismo  interior  de
relojoaria e diz, Sigismundo, levanta-te. Fosse este relato caso contado
por quem  o viveu  e logo  se veria que já começaram as deturpações,
involuntárias umas, premeditadas outras e obedecidas a regras, porque o
que Joana  Canastra realmente disse foi, Sismundo, levanta-se, e aqui se
verifica a  que ponto é pequena a margem para o erro quando ambos sabem
do que  se trata, a prova é que Sigismundo Canastro, a quem por sua vez
não faltam  dúvidas ortográficas,  atira a manta para trás, salta da
cama em  ceroulas e atravessa a casa para ir abrir o postigo e espreitar
para  fora.  E'  ainda  escura  noite,  só  um  olho  agudíssimo,  que
Sigismundo Canastro  já não tem, ou uma experiência de milénios, que
lhe sobra,  permitiriam distinguir  a imponderável  mudança que há na
banda da nascente do dia, talvez, entenda quem puder estes mistérios da
natureza, o  brilho maior das estrelas, quando o contrário é que havia
de parecer  certo. A  noite está fria, nem admira, Novembro é bom mês
para isso,  mas o  céu mostra-se  descoberto e  assim irá  ficar, como
também em  Novembro acontece  muito. Joana  Canastra já  se  levantou,
acende o  lume, empurra  a cafeteira  tisnada para aquecer o café, é o
nome que  continua a  ser dado  a esta mistura de cevada ou chicória ou
tremoço queimado e moído, nem a gente sabe o que bebe, e vai buscar `a
arca meio  pão e três sardinhas fritas, não ficou muito mais na arca,
se ficou  alguma coisa,  põe tudo  em cima  da mesa e diz, Tens o café
quente, vem  comer. Hão-de parecer estas palavras triviais, pobre falar
de gente  pouco imaginosa  que nunca  aprendeu a engrandecer os pequenos
actos da  existência com  palavras superlativas,  veja-se se há alguma
comparação entre  a despedida  de Julieta e Romeu no balcão do quarto
onde a  donzela se  fez dona  e as  palavras ditas pelo alemão de olhos
azuis `a  não menos donzela, mas plebeia, que sobre os fetos a dona foi
forçada. E  o que  ela lhe  disse. Fossem  estes diálogos  mantidos na
elevação das  suas circunsta^ncias  e  saberíamos  que,  embora  não
primeira, esta  saída de  Sigismundo Canastro tem que se lhe diga e por
isso irá dizer-se. Comeu Sigismundo Canastro meia sardinha e um naco de
pão, sem  prato nem  garfo, cortando  pedacinhos dela e bocadinhos dele
com a  ponta meticulosa  da cuchila,  assentou sobre  esta papa  já  no
esto^mago o  conforto quente  do café  aleijado, há  quem jure  a pés
juntos  que   a  existe^ncia   de  Deus  se  prova  pela  existe^ncia  e
concordância do  café e  da sardinha frita, mas isto são questões de
teologia, mas  de viagens matinais, pôs o chapéu na cabeça, atacou as
botas,  enfiou   um  pelico  surrado  e  disse,  Até  logo  mulher,  se
perguntarem por  mim, diz  que não  sabes aonde  fui. Nem  valia a pena
fazer a  recomendação, é  sempre a mesma, e aliás nem Joana Canastra
poderia dizer muito, pois sabendo ao que vai o marido, e isso não diria
nem que  a matassem,  não sabe  aonde vai  ele, e  portanto nem  que  a
matassem poderia dizer. Sigismundo Canastro estará todo o dia por fora,
voltará noite  fechada, mais por razões de caminho e distância do que
por real  tempo ocupado, embora nunca se saiba. A mulher diz, Até logo,
Sismundo, ela  insiste no  nome assim,  não  devemos  rir,  nem  sequer
sorrir, que  é um  nome, e  depois de  ele ter  saído pela  cancela do
quintal foi sentar-se num cortiço ao pé do lume e ali ficou até o sol
nascer, de mãos juntas, mas não consta que rezasse.    Faustina Mau-Tempo,  no outro  extremo de  Monte  Lavre,  não  está
habituada, é  a primeira  vez. Por  isso, embora saiba que o marido só
deverá sair  de casa  já com  o sol  nascido, não conseguiu dormir em
toda a  noite, espantada  de que  sendo João Mau-Tempo por costume tão
inquieto, ali esteja dormindo sossegadamente, como quem nada teme embora
alguma coisa  deva. São  compensações do  corpo para a alma alterada.
Quando João  Mau-Tempo acorda,  dia claro  mas ainda  não sol  fora, e
lembrança do  que vai  fazer entra-lhe  subitamente pelos olhos dentro,
tanto assim  que os fecha logo, e não por medo que sente uma pancada no
esto^mago, mas  sim por  uma espécie de respeito de igreja, terra campa
ou nascimento  de criança.  Está sozinho no quarto, ouve os ruídos da
casa e  os do  exterior, um  cantar friorento  de pássaro esquecido, as
vozes das  filhas e o estalar da lenha a arder. Levanta-se, já foi dito
que é um homem pequeno e seco, tem uns olhos azuis luminosos e antigos,
e nesta  idade de  quarenta e  dois anos  em que  está, rareiam-lhe  os
cabelos e  os que  tem embranquecem,  mas antes de se po^r de pé tem de
fazer uma  pausa, acomodar  o corpo  `a pontada  que a posição deitada
ressuscita todas  as noites,  e  não  devia  ser  assim,  devia  ser  o
contrário, se  o corpo descansou. Vestiu-se e entrou na cozinha, que é
a casa  de fora,  chega-se ao  lume como  se ainda  quisesse conservar o
calor da cama, nem parece que está habituado a grandes frios, diz, Bons
dias, e as filhas vão  beijar-lhe a mão, é uma alegria ver a família
reunida, todos  desempregados,  em  alguma  coisa  se  hão-de  entreter
durante todo o dia por fora, voltará noite fechada, mais por razões de
caminho e  distância do  que por  real tempo  ocupado, embora  nunca se
saiba. A  mulher diz,  Até logo,  Sismundo, ela  insiste no nome assim,
não devemos rir, nem sequer sorrir, que é um nome, e depois de ele ter
saído pela cancela do quintal foi sentar-se num cortiço ao pé do lume
e ali  ficou até  o sol  nascer, de  mãos juntas,  mas não consta que
rezasse.    Faustina Mau-Tempo,  no outro  extremo de  Monte  Lavre,  não  está
habituada, é  a primeira  vez. Por  isso, embora saiba que o marido so'
deverá sair  de casa  já com  o sol  nascido, não conseguiu dormir em
toda a  noite, espantada  de que  sendo João Mau-Tempo por costume tão
inquieto, ali esteja dormindo sossegadamente, como quem nada teme embora
alguma coisa  deva. São  compensações do  corpo para a alma alterada.
Quando João  Mau-Tempo acorda,  dia claro  mas ainda  não sol  fora, e
lembrança do  que vai  fazer entra-lhe  subitamente pelos olhos dentro,
tanto assim  que os fecha logo, e não por medo que sente uma pancada no
estômago, mas  sim por  uma espécie de respeito de igreja, terra campa
ou nascimento  de criança.  Está sozinho no quarto, ouve os ruídos da
casa e  os do  exterior, um  cantar friorento  de pássaro esquecido, as
vozes das  filhas e o estalar da lenha a arder. Levanta-se, já foi dito
que é um homem pequeno e seco, tem uns olhos azuis luminosos e antigos,
e nesta  idade de  quarenta e  dois anos  em que  está, rareiam-lhe  os
cabelos e  os que  tem embranquecem,  mas antes de se pôr de pé tem de
fazer uma  pausa, acomodar  o corpo  `a pontada  que a posição deitada
ressuscita todas  as noites,  e  não  devia  ser  assim,  devia  ser  o
contrário, se  o corpo descansou. Vestiu-se e entrou na cozinha, que é
a casa  de fora,  chega-se ao  lume como  se ainda  quisesse conservar o
calor da cama, nem parece que está habituado a grandes frios, diz, Bons
dias, e  as filhas vão beijar-lhe a mão, é uma alegria ver a família
reunida, todos  desempregados,  em  alguma  coisa  se  hão-de  entreter
durante todo  o dia,  passajar umas  roupas, Gracinda tem o enxoval, vai
devagarinho, conforme se pode, o casamento é só para o ano que vem, `a
tarde irá  com a  irmã lavar  roupa na ribeira, uma carga de roupa que
foram buscar  ao prédio, sempre são vinte escudos. Faustina, que está
a ensurdecer, não ouviu o marido, mas sentiu-o, foi talvez a vibração
sísmica da  terra pisada  ou a  deslocação de ar que só o corpo dele
pode causar,  cada qual  a sua,  é verdade,  mas estes vivem juntos há
vinte anos,  só um  cego se enganaria, talvez, e ela dos olhos não tem
razão de  queixa, o  ouvido é  que vai faltando, embora lhe pareça, e
essa é  a sua  desculpa de todos os dias, que as pessoas têm agora uma
embrulhada maneira  de falar,  como se  fizessem de  propo'sito. Parecem
coisas de  velhos, mas  são apenas  coisas de  gente cansada  antes  da
idade. João  Mau-Tempo vai  alimentado para  a jornada,  bebeu o café,
tão ruim  como o  de Sigismundo  Canastro, comeu o pão de mistura, que
parte de  trigo há  nele, e meteu no bucho um ovo cru, buraco num lado,
buraco no outro, é um dos seus grandes prazeres na vida, assim pudesse.
Já lhe  passou o aperto do estômago, e agora que o sol vai saindo deu-
lhe uma  grande pressa,  diz, Até  logo, se  alguém perguntar por mim,
não sabem  aonde fui,  e não são palavras combinadas, é o natural de
quem tem  o falar  ao pé  da boca  e não se vai pôr a rebuscar outras
razões. Nem  Gracinda nem  Amélia sabem  aonde vai  o pai, e perguntam
depois de  ele sair, mas a mãe é surda, como já estamos informados, e
finge que  não ouviu.  Não se lhe pode levar a mal, que as moças são
novas e levantadas, só por causa da pouca idade, não por estouvamento,
assacação que ofenderia pelo menos Gracinda, sabedora das aventuras de
Manuel Espada,  primeiro grevista  conhecido de  Monte  Lavre,  mais  os
companheiros, quando ainda era rapazelho.    O encontro  é na  Terra Fria. São nomes dados a sítios, certamente
por  algum  motivo  que  se  entenderia,  mas  este  de  Terra  Fria  em
latifu'ndio tão  quente de Verão e de Inverno tão frio por igual, só
revertendo `as  origens e  essas perderam-se, como é costume dizerem os
adormecidos, na noite dos tempos. Mas antes de lá chegarem se juntarão
Sigismundo Canastro  e João  Mau-Tempo, no  cabeço da Atalaia, não no
alto, claro  está, era  o que faltava porem-se estes homens `a vista de
quem passasse,  embora o latifúndio não seja, neste lugar particular e
nesta ocasião,  concorrido como  a praça do Giraldo, se percebem o que
queremos dizer. Encontrar-se-ão no pé do cabeço, onde há um arvoredo
basto, Sigismundo  Canastro conhece  bem o  sítio, João Mau-Tempo não
tanto, mas  um homem mesmo sem boca vai a Roma. E dali para a Terra Fria
seguirão juntos,  por caminhos  que Deus  nunca andou  e  o  Diabo  só
obrigado.    Não está  ninguém na varanda circular do céu, aquela que por cima
do horizonte  é o  costumado palanque  dos anjos  quando  na  arena  do
latifu'ndio há  grandes movimentações.  E' esse o grande e fatal erro
dos exércitos celestes, julgarem tudo pela bitola da cruzada. Desprezam
as pequenas  patrulhas, os  destacamentos aventureiros,  os voluntários
para esta  missão, os  minu'sculos pontinhos que são dois homens aqui,
um além,  outro mais  adiante, outro  ainda  longe  e  atrasado,  todos
convergindo, mesmo  quando parecem desviar caminho, para um lugar que no
céu não  tem nome,  mas cá  em baixo  se chama  Terra Fria. Talvez se
pense no  remansoso empíreo  que aqueles humanos vão banalmente para o
trabalho, não  obstante a  falta dele, como até no céu se devia saber
por ocasionais  recados do  padre Agamedes, e é verdade que de trabalho
se trata. E' uma diferente seara, responsabilidade tão grande que João
Mau-Tempo perguntará  a Sigismundo Canastro quando se encontrar com ele
e depois  de dados  os primeiros  passos, ou  não  logo,  quando  tiver
conseguido vencer  a timidez,  Achas que  me vão  aceitar, e Sigismundo
Canastro responderá,  com a  segurança de mais velho nisto e na idade,
Já foste aceitado, não tenhas medo, nem virias hoje comigo se houvesse
algumas du'vidas.  Há quem  venha de  bicicleta. Ficará  escondida  no
mato, em  local de  alguma maneira  facilmente identificável,  não vá
perder-se depois  o norte.  Desta vez não haverá que recear o problema
da chapa  de matrícula,  tudo se  passa dentro  do  concelho,  so'  por
embirração ou  su'bita desconfiança a guarda mandaria parar, Aonde é
que vai, donde é que vem, mostre cá a licença, e isso não seria bom,
este homem chama-se por acaso Silva, mas também se chama Manuel Dias da
Costa, é  um supor, Silva para aqueles com quem vi estar na Terra Fria,
para a  guarda Manuel  Dias da  Costa, para  o  registo  civil  um  nome
diferente e  também para  o padre  Agamedes que  o baptizou muito longe
destes sítios.  Há  quem  defenda  que  sem  o  nome  que  temos  não
saberíamos quem  somos, é  um dito que parece perspicaz e filosófico,
mas este  Silva ou  Manuel Dias  da Costa  que carrega nos pedais por um
caminho carreteiro enlameado, já felizmente deixou a estrada por onde a
guarda de improviso passa ou está dias inteiros sem aparecer, mas nunca
se sabe, quem adivinha vai para a casinha, este ciclista avança tão em
paz na  sua alma,  que bem  se vê  como lhe  não  tocam  estas  subtis
questões de identidade, tanto de si pro'prio como de papéis. Reparando
melhor, porém,  não é  tanto assim, mais seguro ele está de quem é,
do que  dos documentos  que o  nomeiam.  E  como  é  um  homem  dado  a
pensamentos, pensa  como é  singular perceber menos a guarda aquilo que
vê, o homem e a sua bicicleta, do que um papel escrito e carimbado, já
cansado de ser aberto e fechado, Pode seguir, mas enquanto assenta o pé
no pedal e dá o impulso, pensa que tão cedo não convirá que por esta
estrada passe,  por isso  veio pela primeira vez para estes lados e teve
sorte, que ninguém o mandou parar.
   Há quem  viaje de  comboio, saia  em São Pedro Torcato, na linha de
Setil, ou  em Vendas  Novas, ou  mesmo em  Montemor,  mais  além  se  o
encontro for  na Terra da Torre, nestas estações daqui se for na Terra
Fria. Bem  está neste  caso para  quem vier de São Geraldo, é o salto
duma pulga,  mas se  neste dia de hoje alguém saiu de São Geraldo para
iguais cometimentos,  seguiu para  mais longe,  talvez não acaso, regra
será e  decerto com  suas fundamentações.  A esta  hora, meia  manhã
andada, já  não se ve^ a bicicleta, os comboios andam por muito longe,
lá vai  ele a assobiar, e sobre a Terra Fria paira um milhano caçador,
é bonito  de ver,  mas muito mais bonito é estar a vê-lo e de repente
ouvi-lo  gritar,  aquele  pio  longo  que  ninguém  pode  exprimir  por
palavras, mas  quando o  ouvimos logo  queremos dizer  como foi,  e não
saímos disto, bichos de piar é o que menos falta, entre pintos de toda
a espécie é a voz comum, mas este grito é diferente, tão de natureza
brava, faz  assim um  arrepio, nem  me admiraria  que de  tanto o  ouvir
acabasse  por   nos   nascerem   asas,   têm-se   visto   coisas   mais
extraordinárias. Pairando  alto, o  milhano deixa  pender  um  pouco  a
cabeça, é  um simples  jeito, pois  a vista  não precisaria  de  tão
mínima aproximação,  nós é  que  temos  estas  mazelas  de  miopia,
astigmatismo, palavras  que, a  propo'sito se  diga,  devemos  acautelar
neste sítio  do latifúndio, podem os anjos confundir com estigmatismo,
palavras que,  a propósito  se diga,  devemos acautelar neste sítio do
latifu'ndio, podem  os anjos  confundir com estigmatismo, vir `a varanda
`a procura de Francisco de Assis e dar com um simples milhano aos gritos
e cinco  homens que se aproximam, uns perto, outros mais longe, da Terra
Fria. Quem  os ve^ a todos lá de cima, é o milhano, mas esse não é a
ave para ver e ir contar.    Os primeiros  a chegar  foram Sigismundo  Canastro e João Mau-Tempo,
esmeraram-se nisso  por um deles ser novel. Enquanto esperavam, sentados
ao sol  para não  arrefecerem depressa  de  mais,  Sigismundo  Canastro
disse, Se  tirares o  chapéu,  põe-no  de  copa  para  cima,  Porquê,
perguntou João  Mau-Tempo, e o Sigismundo Canastro respondeu, Por causa
do nome,  no's não  devemos saber os nomes uns dos outros, Mas eu sei o
teu, Pois  sabes, mas  não dirás, os camaradas farão o mesmo, isto é
para o  caso de  vir a  haver prisões,  não sabendo os nomes estamos a
salvo. Ainda  disseram outras  coisas, falar  solto, mas João Mau-Tempo
ficou a  pensar nesta,  tantos cuidados,  e quando chegou o da bicicleta
percebeu que  deste é  que nunca  saberia o nome verdadeiro, talvez por
causa do  respeito mostrado  por Sigismundo  Canastro, embora o tratasse
por tu,  se justamente  tutear não era o respeito maior. Este é o novo
camarada, disse  Sigismundo Canastro,  e o da bicicleta estendeu a mão,
não era a mão grossa do trabalhador do campo, mas forte sim, e so'lida
no apertar,  Camarada, a  palavra não  é  nova,  são  isso  mesmo  os
companheiros no  trabalho, mas   é  como dizer tu, é igual e logo tão
diferente que  os joelhos  dobram e a garganta se contrai, caso estranho
em homem  que passou  dos quarenta  e viu  muita coisa  de mundo e vida.
Estão os  tre^s nisto,  fazendo tempo  enquanto os  outros não chegam,
Esperamos meia  hora, se  não vierem  começamos nós, `as tantas João
Mau-Tempo tira  o chapéu  e antes de o pôr no chão, de copa para cima
como Sigismundo  Canastro recomendara, olhou para dentro, ao disfarce, e
viu escrito  João Mautempo na fita, em letras de chapeleiro, era esse o
costume provincial  daquelas épocas quando já nas cidades se cultivava
o anonimato.  O da  bicicleta, isto  sabemos nós,  que João  Mau-Tempo
julgará que  também ele  veio todo o caminho a pé, o da bicicleta usa
boina, não  é nada  certo que  nela tenha  o nome,  e se tivesse, qual
seria,  boinas  compram-se  nas  feiras,  em  algibebes  que  não  têm
prosápias de  comércio letrado  nem instrumentos  de pirogravação ou
douração e a quem tanto dá que o freguês perca o gorro como o ache. 
Saramago, José, Levantado do Chão, Círculo de Leitores, Lisboa 1988, pp. 168-174
 
 
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