Working Papers Series

O Homem Novo na Construção do Projecto

Societário Repúblicano

-leitura através do textos de Fernando Catroga-

 

 

Bernardo Alfredo Henríquez Cornejo

 

 

1.A constituição do movimento republicano

No trabalho de longo folego que nos apresenta Fernando Catroga sobre o Republicanismo em Portugal (1991), define o republicanismo português das três últimas décadas do século XIX e do principio do XX, como a,

"Encarnação política de uma revolução cultural (...). Espécie de messianismo simbolizado por uma ideia-força, possuia a vis épica característica dos grandes movimentos sociais de vocação redentora E sendo uma opção ditada por uma visão optimista do mundo, o advento da República era sentido como uma consequência inexorável de um destino inscrito na própria evolução cósmica. (...) O republicanismo foi um projecto político, e uma mundividência" (Catroga:1991,193)

O autor que o qualifica como movimento revolucionário, "regenerador" e projecto global totalizante para a sociedade portuguesa, defende que, embora o ideário republicano esteja presente nesta sociedade desde a segunda metade do século XIX e que a fundação do Partido Republicano date de 1876 é, sobretudo, a partir da década de 70 que o movimento começou a cristalizar as suas bases mais consistêntes (Catroga:1991,12). Para o autor, a conjugação de condições externas e internas de forte incidência social e política da sociedade portuguesa, deteterminaram o crescimento do ideário republicano, (idem,13).

A argumentação de Catroga vai no seguinte sentido:

a.- Coincidente com a Regeneração, como fenómeno que assinala o ínício da industrialização capitalista em Portugal, a partir de 1850, o sistema monárquico -constitucional Português entra numa nova fase caracterizada pela luta entre facções liberais, que dariam origem à formação de um bloco social constituído para gerir os negócios públicos segundo uma estratégia desenvolvimentista e pragmática. Para o autor, este modelo, subalternizado aos interesses económicos da Inglaterra, beneficia uma burguesia que iria prosperar através da especulação e dos negocios de importação e exportação, bloqueando o crescimento acelerado de uma burguesia nacional de inserção industrialista (Catroga,idem 13);

b.- Apesar deste crescimento subalternizado, surge uma industria significativa configurando-se um mercado interno a partir do crescimento acelerado das cidades, nomeadamente Lisboa, que viu aumentar a sua população de 187.OOO habitantes, para 450.000 nas vesperas da república. Este crescimento e mudança de relações sociais de produção é acompanhado, a partir desta década, de lutas sociais que envolvem os perários, os artesãos e também o sector do comercio, onde surgem,

"depois de 1870, o primeiro surto grevista com real significado são manisfestações que radicam nos antagonismos gerados pelo choque entre os interesses capitalistas, as relações pré-capitalistas subalternizadas e a aparição de propostas visando a construção de uma sociedade mais justa" (Catroga,idem,14) .

Para este autor, o republicanismo terá crescido a partir destes anos, explorando, simultaneamente as contradições das próprias facções monárquicas e a insatisfacção dos movimentos populares e deste nascente movimento socialista. Afirma Catroga que,

"Esta crise increvia-se num quadro de lutas sociais e políticas a que já não era extranha a agudização da questão social provocada pelo embate de acontecimentos externos muito relevantes. Tanto os agrupamentos monárquicos como o próprio movimento republicano começaram a sentir a urgente necessidade de se encontrar uma resposta para os perigos resultantes dessa instabilidade." (Catroga:idem,15)

c.- As alternativas à crise social e política advêem em primeiro lugar do eco da revolução espanhola de 1868. Afirma Catroga que as lutas republicanas no vizinho país contra a monarquia espanhola, e a questão da sucessão dinástica terá reacendido a questão ibérica: o projecto de reunificar as duas nações ibéricas; o que poderia trazer um desequilibrio precário entre a França, a Inglaterra e a Alemanha, poderia evitar a revolução social, mesmo a custa de perder a independência.

Nesse contexto ganham força no horizonte republicano-socialista, os exemplos políticos dos Estados Unidos e da Suissa propondo uma República ibérica com uma divisão do país em Estados federados (Catroga:16);

Por outro lado, o fracaso espectacular da Comuna e posteriormente a afirmação da III República francesa,

"fizeram ressuscitar o tradicional francocentrismo da nossa esquerda liberal. Esta passou a viver com entusiasmo esses acontecimentos, pois muitos acreditavam que a III República estaria para a I República portuguesa a instaurar como a Grande Revolução esteve para a nossa revolução de 1820. A França era vista como o laboratório social em que se prefigurava o futuro inexorável do nosso país" (Catroga, idem,17)

Para Catroga, o fracasso do federalismo e da Comuna de Paris e, a afirmação da III República, contribuiram de forma determinante para a clarificação do próprio ideário e das tendências republicanas, mas também, para a reorganização dos sectores Monárquicos. A partir desta fase, o fracasso da Comuna e a divulgação da Associação Internacional dos Trabalhadores (1871) contribuiram para demarcar as tendências socialistas associadas ao projecto inicial republicano.

O movimento republicano, como afirma o autor, encontra a sua génese multifacetada a partir da década de setenta, constitui-se ao longo deste período na base angular da mudança do regime monárquico e tentou mobilizar todos os trabalhadores e os sectores sociais descontentes com a governação monárquica, O partido republicano "quis ser explicitamente, um partido que previlegiava a luta política e que apelava para uma base social interclassista" ( Catroga 20). Para este autor, é a partir da década de 1880-1884 que se configura a estrutura orgânica do movimento republicano, garantindo uma certa implantação nacional, sobretudo nos maiores centros urbanos chegando ao seu auge na viragem de século.

No Programa do Partido Republicano de 1891, pretendeu conciliar no escencial,

"os programas republicanos anteriores (unitarista e federalista), limitando-se a sublinhar melhor a opção nacionalista e interclassista do ideal republicano e a acentuar a finalidade que, em última instância sobredeterminava a sua estratégia: a consumação da revolução cultural que seria necessária para completar o processo histórico iniciado com o liberalismo, mas que somente a Republica poderia elevar a um estádio de maior perfeição" (Catroga:idem,84).

Nos seus eixos fundamentais, sublinhados pelo autor, todas as reformas a serem introduzidas simultaneamente deveriam obedecer a dois factores: a organização dos poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial) e a fixação das garantias individuais: as liberdades essênciais, políticas e civís. (Catroga,idem,85). Transparece (a partir da leitura que faz Fernando Catroga) que embora tenham sido instroduzidos elementos importantes no campo jurídico, ideológico, económico e, mesmo num sentido social progressivo ( a preocupação com a condição da mulher, com o cooperativismo, com a protecção da criança, etc.), pugnando pela extinção das estruturas, hábitos, ideias e comportamentos que consideravam como resquicios do Antigo Regime; também tinham sido sacrificados elementos chaves mais representativos das correntes socialistas e igualitaristas do próprio movimento. (Catroga:Idem 86-87)).

Afirma Fernando Catroga que

"Temos como certo que a evolução da crítica ao clero se deu dentro dos quadros teóricos do cientismo e coube à corrente federalista, desde a década de 70, um papel não despiciendo na transformação do anticlericalismo de cariz liberal num anátema contra a própria religião, atitude que deveria objectivar na completa laicização da sociedade portuguesa.E esta perspectiva ganhou particular incidência a partir do magistério de Leão XIII, momento em que a Igreja, para lutar contra a descristianização das massas urbanas e para bloquear o avanço das expectativas revolu-cionárias, se lançou uma ofensiva que irá colocar a questão social, vista numa perspectiva religiosa e corporativa, na ordem do dia" (Catroga;88)

A radicalização do anticlericalismo ganha maior consistência perante as tentativas de formação de um partido catolico porque a questão religiosa surge crescentemente articulada com a questão política e com a opressão económica e social; onde se nota uma clara influência da política laicizadora da III República de Jules Ferry (Catroga:88).

Para Catroga,

"Se o programa de 91 recobria as reivindicações de teor laicista, o mesmo não se pode afirma no respeitante às exigencias de índole social (...) e no concernente à natureza opressiva de toda organização política, mesmo a de inspiração republicana. Por outro lado, o retrocesso do "oportunismo" em França após a queda de Ferry e a crescente influência dos radicais-socialistas e dos solidaristas estariam a demonstrar que a essência do republicanismo não se podia cingir à luta contra a Monarquia, pois implicava a defesa de um projecto global em que seriam partes do mesmo todo tanto a implantação da República como a laicização das instituições e das mentalidades, a liquidação do poder económico do grande capital em nome de um reformismo social de inspiração solidarista. De certo modo, para os activistas dos finais de Oitocentos, o republicanismo, com a correcta ordenação temporal dos seus objectivos, constituia um ideal que, em última análise sintetizava e incorporava não só as aspirações demoliberais, mas também socialistas e anarquistas" (Catroga,idem.90).

Pode fazer-se a leitura de que os sectores mais radicais dos republicanos punham no seu horizonte o socialismo e o anarquismo, entendendo que o Estado republicano e federalista seria apenas uma fase de transição nesse sentido, onde, também, era possível reconhecer o discurso socialista sobre a questão da socialização dos meios de produção e do capital. Afirma Catroga, que esta tendência radical ganhou consistencia organizativa nos últimos anos do século XIX. Organizados como Grupo Republicano de Estudos Sociais, criado em 1896,

"incentivaram o incremento da luta contra a Monarquia e o estudo da realidade, a fim de se definirem as reformas de ordem económica, política e moral, susceptíveis de serem aplicadas à nação portuguesa quando implantada a República" (Catroga,op.cit.92)

Para Fernando Catroga, os propagandistas republicanos na primeira década do século XX,foram semeando um imaginário social em que o ideal republicano aparece indissociável do sonho de emancipação social que escapando ao jogo eleitoral, consubs-tanciava um ideário revolucionário. Ideológicamente uma espécie de síntese entre a social-democracia à alemã e o respeito pela pluradidade dos interesses à inglesa ( Catroga,idem,93).

 

2. O Ideário do Projecto do Movimento Republicano.

No segundo volume da sua obra sobre o Republicanismo em Portugal (Catroga:1991) analisa o corpus do conteúdo do ideário do movimento republicano. Assim este autor começa por defender que

"O republicanismmo constituiu um movimento em que a explicação da luta pela conquista do aparelho de Estados seria incompleta se não se levar em conta o horizonte cultural que o impulsiono. Na verdade, mais do que qualquer outra opção política até então manifestada, havia consciência de que a República era uma proposta de matriz ontológica, pois a exigência da queda da Monarquia passou a ser gradualmente apresentada como um imperativo não só da natureza humana, mas, e sobretudo, da evolução objectiva do próprio universo, tendência esta que o homem iluminado deveria apreender para derramar pelo povo, transformando-se em seu mediador ético-social e praxistico privilegiado. (Catroga,1991,168).

Capturando para si, e recriando, o ideário iluminista do progressismo, o movimento republicano foi configurando-se como uma força hegemonizadora, até inícios do século XX, no contexto dos quadros ideológicos da sociedade portuguesa. (Catroga,op cit,168).

"Umbilicalmente ligado aos valores essenciais da longa revolução cultural burguesa, o republicanismo foi a tradução politicamente mais significativa do combate contra a sobrevivência de valores do Antigo Regime que constituíam resistencias mentais, ainda fortes, ao alargamento e à consolidação das relações sociais (económicas, políticas e culturais) capitalistas e ao enraizamento das ideias liberais e democráticas. Como tudo isto se deu numa fase em que as necessidades de liquidação desses resíduos tradicionais passaram a coexistir com a emergência da questâo social, não admira que, em conjugação com o seu carácter ofensivo perante o antigo, denote uma grande preocupação integradora no que respeita às propostas teóricas e sociais de origem operária e socialista. Deste modo, enquanto expressão política de um Iluminismo actualizado, julgamos poder afirmar que tudo isto foi possível porque a mundividência republicana assentou numa explicação geral da natureza e da sociedade. que procurou diluir os interesses específicos dos grupos sociais no interesse geral" ( Catroga,op cit,169)

Perante a falta de vitalidade e a subalternização económica, a decadência e estagnação da vida cultural e científica, o prolongamento da influência de uma Igreja Católica ultramontana, o esgotamento do rotativismo parlamentar; o projecto do movimento republicano que pretende construir um bloco social nacional apostado em mobilizar o povo português no sentido do futuro, encontra plena adesão e justificação, como projecto alternativo ao status quo monárquico.

Para Fernando Catroga, o republicanismo, enquanto ideologia,

"possuía uma lógica interna suficientemente autónoma para a demarcar das demais expectativas sociais que se foram definindo a partir da segunda metade do século XIX. Dito de outro modo, encararemos o republicanismo como uma doutrina sociopolítica de raíz humanista, que inseriu a defesa dos direitos individuais num horizonte de sociabilidade cívica. Mas procurar--se-à demostrar que só encontraremos os seus fundamentos últimos se o interpretarmos como um projecto que postulava uma epistemologia, uma concepção da natureza e da sociedade, uma crítica das religiões e uma nova moral, sem sanção nem obrigação e, manisfestava uma consciência bem clara de que, tal como acontecia com o catolicismo e com as suas ligações políticas, só a interiorização da nova racionalidade e de um novo sentimento colectivo, fundidos com a vivência ritual de uma nova simbologia comunitária (...), o poderia transformar em poder político" (Catroga:op cit,170),

 

3.- O Homem Novo no ideário republicano.

 

Por estas razões, para este autor, tinha uma certa lógica e era de importância suprema a estratégia republicana da tomada do poder político, através do controlo do poder do Estado, o que

"passava igualmente pela afirmação de um ideal e que a prática política deveria ser, antes de mais, uma paideia, isto é, uma prática educativa e de ensino, ao mesmo tempo que a anatemização do catolicismo e das religiões era inseparável do fomento de uma eticidade e de uma religiosidade postas ao serviço da unidade nacional. (...) O republicanismo erigiu o Estado em instância de produção do social e em principal agente de unificação de uma sociedade política alicerçada em indivíduos. (Catroga,op. cit,171).

A ideia republicana, sustentada pela leitura reiterada de Fernando Catroga, da construção de um Homem Novo ao longo de gerações, como garantia desta nova ordem societária, pressupunha uma alteração total no plano institucional, uma revolução, especialmente como produtora e reprodutora dos novos ritos e valores laicos, baseados na ciência, na moral e na educação cívica-solidária; num altruismo socializante que necessitava de ser pedagogicamente alimentado e cultivado desde a infância, onde a escola e a educação, como espaço de uma nova sociabilidade, desempenhavam um elemento essêncial. (Catroga:Idem,455).

Por fim, para Fernando Catroga, a base intelectual matricial do espírito deste projecto totalizante que visava revolucionar, a sociedade portuguesa só pode ser encontrado na génese do pensamento intelectual construído a partir da denominada Geração de 48. Para este autor só o estudo deste pensamento pode explicar a maturidade do movimento republicano e do seu projecto finisecular que vence os seus fracassos anteriores.( Catroga, idem 192).

Sublinha que na base desta construção intelectual, que se opõe frontalmente ao pensamento e ao providencialismo teológico e conservador, o papel importante que desempenha o historicismo e o cientismo, na construção de um determinismo natural,como questão substantiva na autolegitimação e na construção do seu pensamento e da sua visão do mundo. Para Catroga, o republicanismo português, fundamentava a sua justificação no devir da natureza com o da história, científicamente explicado.

"A República enquanto ideal onticamente fundamentado, teria como critério último a verdade, não de um saber de origem teológica, mas demostrações tidas por científicas" (Catroga,idem 211).

Reivindicando, também, a herança do património secularizador da modernidade e dos movimentos radicais do "século das Luzes", que acentuaram o Homem como centro da construção social e da transformação da natureza e, em consonância com o seu émulo francês, encontrou no cientismo a base da sua fundamentação e justificação:

"Foi dominantemente um cientismo, isto é, apresentou a sua filosofia e o seu modelo de sociedade como propostas tiradas do conhecimento científico. Para isto elevou as ciências naturais (e a metodologia empirista e experimentalista) à categoria de critério último de verdade. Como se compreeende, muitas das proposições que em seu nome foram avançadas, de científico tinham somente a pretensão e a ganga terminológica, pelo que essa atitude foi uma espécie de ideologia teórica que, extrapolando algumas conclusões das ciências as integrou em discursos ideológicos mais totais, pretendendo, deste modo dar-lhes a credibilidade epistemológica que só o conhecimento científico-natural então gozava" (Catroga, idem 211).

Conclui a análise de Catroga que neste ambiente intelectual historicista que acreditava no advento da república como um facto cientificamente inevitável, por analogia às construções evolucionistas verificada nas ciências da natureza, a sociologia comteana surgia como uma ciência para confirmar e legitimar esta inevitabilidade política moral e social.

"Eles acreditavam que os fenómenos sociais foram os últimos a serem científicados em virtude da sua complexidade e da necessidade epistemológica de, previamente, se alcançar a explicação a explicação científica dos fenómenos ontológicamente antecedentes. Mas, igualmente acreditavam, como Comte e seus discipulos, que essa cientificação permitiria a intelecção fenomenológica do devir universal (incluindo a evolução social) e a transmutação desse saber em acção prática, de modo a construir-se uma nova ordem social de acordo com os ditames empírico-racionais e históricos (Catroga:idem,220)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia

 

-CATROGA, Fernando (1989) O Laicismo e a Questão Religiosa em Portugal (1865-1911), Revista Análise Social, Vol XXIV. Nº 100, Lisboa

-CATROGA, Fernando (1991) O Republicanismo em Portugal - Da Formação ao 5 de Outubro (2 Vol), Coimbra, Colecção Estudos - 15, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

-SERRÃO, Joel (Dir) (1971) Diccionário de História de Portugal,(5 Vol.) Lisboa, Iniciativas editoriais.

-SERRÃO, Joel; Marques, Oliveira (Dir) Nova História de Portugal,Vol.XI, Lisboa,Edit. Presença.