Uma biblioteca pública numa sociedade de informação obcecada pelo mercado: desafios e oportunidades

Pedro Ferraz de Abreu

MIT, USA - CITIDEP, USA

pfa@mit.edu

Ferraz de Abreu, P. (2001), "Uma biblioteca pública numa sociedade de informação obcecada pelo mercado: desafios e oportunidades". Em 'Bibliotecas Publicas e Novas Tecnologias: Como combater a exclusão dos info-pobres?', Dept. de Cultura da Camara Municipal de Lisboa (ed.), 2001, 142 paginas, pp 9-17.


Na minha intervenção, quero antecipadamente clarificar o seguinte: a minha formação profissional não envolve bibliotecas. Provavelmente a maior parte de vocês, se não todos, sabem mais de bibliotecas do que eu e portanto certamente serei eu a aprender convosco e não vocês a aprender comigo nesta matéria.

A minha área de qualificação tem a ver com as tecnologias de informação, mas tem sobretudo a ver com o planeamento e desenvolvimento de estratégias. E penso que nesse aspecto poderá ser útil eu partilhar convosco algumas das preocupações que considero importantes, numa altura em que se está a construir de raiz uma nova biblioteca municipal, que é o ponto focal e foi um bom pretexto para a organização deste colóquio. No fim de contas, o objectivo foi recolher um conjunto de pontos de vista e experiências para apoiar este projecto de forma a que se possa aproveitar o melhor -- e começar de raiz, optimizando a experiência.

O que eu quero sobretudo é levantar algumas questões, deixar algumas interrogações na vossa cabeça em relação às tecnologias e em relação particularmente ao tema do nosso painel, que trata da exclusão social na sociedade de informação.

Fundamentalmente as tecnologias trazem-nos um desafio, uma oportunidade e alguns perigos. Eu vou rever brevemente aquilo que resulta da minha investigação sobre a evolução da tecnologia, sobre o que é de facto a grande mudança na evolução tecnológica.

Uma das minhas citações favoritas, como alguns que me conhecem sabem (porque nós na engenharia e no planeamento temos poucas ocasiões para citar os clássicos, enquanto que os nossos colegas de humanidades têm mais oportunidades de "brilhar") é uma frase de Platão que eu encontrei, em que ele diz: "a democracia não vai além do alcance da voz do Homem". Este aspecto do alcance da voz é fundamental para nós falarmos em acesso e em exclusão.

No início, em que as tecnologias disponiveis para a comunicação eram sobretudo a garganta e as orelhas, todos nós estavamos equipados de igual modo, apenas artificialmente se podia criar e introduzir uma distinção. Quando não havia senão esse meio de "tecnologia de base", o alcance teria que ser o de uma sala ou recinto não muito vasto, enfim, o alcance de uma voz.

Um parentesis: evidentemente, haveria mesmo assim que pensar na minoria dos que tem problemas na audição e na fala (e não é de menor importancia quando se fala de exclusão social), mas para esta analise é suficiente considerar em termos gerais a igualdade de condições predominante.

Com a amplificação que a tecnologia tornou possivel, no que eu chamo as tecnologias de "broadcasting", ou seja com a introdução da imprensa, da rádio e da televisão, deu-se um salto tremendo na tecnologia, em que se passou a dar um alcance maior à voz do ser humano, mas com um problema: enquanto antes todos podiam ouvir e falar em condições iguais, na altura em que a "tecnologia de base" era a garganta e as orelhas como vimos, agora passaram a ser uns, poucos, a terem a voz amplificada e outros, muitos, a poder ouvir. Introduziu-se, aqui, o princípio da desigualdade no que respeita à posição do cidadão perante a tecnologia. Parece que estávamos então condenados a que, na melhor das hipóteses, os poucos que têm a sua voz amplificada representassem os muitos que estavam condenados apenas a ouvir.

É evidente que isto é uma forma simplista de resumir as relações entre as características tecnológicas e os modelos políticos de decisão mais complexos, que têm muitos outros factores e variáveis que os condicionam. Mas a natureza intrínseca da tecnologia, de facto não permitia senão que uns poucos tivessem voz amplificada, relegando a grande maioria para a condição de ouvintes, de receptores.

Ora bem, a grande revolução tecnológica que nós temos hoje é a oportunidade e um desafio que enquadra a iniciativa das novas bibliotecas. As novas tecnologias, como satélites, redes, o micro-computador pessoal, sofware e infra-estruturas como a internet, repuseram a igualdade num nível que nunca houve antes na história da humanidade, no que respeita a haver uma base de igualdade entre os cidadãos perante a natureza instrínseca da tecnologia. Com efeito, na internet qualquer um pode ser tanto produtor como consumidor de informação. A natureza intrínseca da rede não distingue entre as pessoas que são emissoras ou receptoras numa comunicação. Com a diferença que hoje, ao contrário dos tempos de Platão, o limite do alcance da voz do ser humano ampliou-se: podem ser muitos a ter a voz amplificada e muitos a ouvir.

Em resumo, podemos dizer que, no que respeita à natureza intrinseca da tecnologia disponivel, passámos de um estágio em que poucos podiam comunicar com poucos, para um outro em que poucos podiam comunicar com muitos, e finalmente para um em que muitos podem comunicar com muitos. (ver slide).

 

Evolução das Tecnologias de Informação e o seu Impacto

 

Tecnologias de Informação

Atributos

Modelos de Decisão

 

voz

 

manuscrito

• de "poucos" a "poucos"

• alcance limitado

• sem processamento auxiliar

• acesso barato, universal

• custos de controle baixos

democracia directa

 

imperios heterogenios

imprensa

 

radio

 

TV

• de "poucos" a "muitos"

• alcance ilimitado

• com processamento na fonte

• acesso muito caro, restrito

• custos de controle medios

democracia representativa

 

ditaduras homogenias

rede satelite

 

rede fibra optica

 

µcomputador

• de "muitos" a "muitos"

• alcance ilimitado

• com processamento na fonte e no destino

• acesso custo moderado, potencialmente universal

•custos de controle altos

democracia participativa

 

 

ditaduras tecnocratas

slide 1 - in PhD Thesis Working Papers, Pedro Ferraz de Abreu, MIT, 1994

 

Contudo, isto é a promessa da tecnologia mas não a realidade e é este o primeiro desafio que se levanta.

Se nós temos problemas de acesso e falamos de info-exclusão é porque não é suficiente a natureza intrínseca da tecnologia por um lado, e por outro é porque as formas concretas de desenvolvimento de aplicações de tecnologia sob a forma de telefones, de redes, de televisão por cabo, de micro-computadores terminais, de software e por aí a fora, também estão a introduzir desigualdade. É a minha sugestão (e a minha provocação para vocês) de que essa desigualdade não é intrínseca à tecnologia mas pode vir a transformar-se num factor endémico, sendo que a tecnologia pode ser desenvolvida, investigada e promovida numa direcção que vai incrementar essas desigualdades.

Passo a um exemplo concreto: fala-se muito hoje da televisão interactiva. Mas o que é a televisão interactiva para quem a promove, que são as empresas que têm o monopólio da sua utilização? A televisão interactiva, para as empresas que a controlam, é o consumidor poder escolher "ao vivo" entre comprar A, B ou C, seleccionando produtos oferecidos via televisão. Ou seja, interacção restringindo o cidadão ao papel de consumidor. Ora, do ponto de vista tecnológico nada impede que cada um de vocês possa ser um produtor nacional ou local na televisão por cabo e emitir um programa. Contudo, mesmo tecnológicamente, isso não é possível neste instante e porquê? Porque foi opção das empresas que desenvolveram um produto em função de estratégias de mercado, que criaram uma situação tal, em que efectivamente vocês são essencialmente consumidores e não produtores de informação. Porque caso contrário, todo o consumidor passaria a ser um potencial competidor na oferta de informação -- ou serviços derivados. Ora bem, há aqui qualquer coisa que não está a funcionar e então a reflexão que se impõe é: é inevitável isto?

Há quem diga que sim. Que a quantidade de dinheiro necessária para investir e para conseguir desenvolver a tecnologia é tanta que é necessario dar margem à motivação do lucro. Que há que ser realista e a unica solução está no mercado, nas empresas ou no universo empresarial. Que a única forma de nós conseguirmos que haja uns quantos computadores oferecidos às escolas e às bibliotecas ou poder comprar a um preço mais acessivel, será permitir que se instalem este tipo de desigualdades intrínsecas nas nossas infra-estruturas.

A questão que se levanta é a seguinte: será mesmo este o único caminho possivel?

Contudo, a cidade de Cambridge nos Estados Unidos da América, quando negociou a televisão cabo com as empresas, pôs como condição que tinham que existir canais temáticos para a cidade e quem os ficaria a controlar seriam grupos de cidadãos segundo regras a estabelecer democráticamente na cidade. E assim existe um conjunto muito diverso de programas culturais e políticos, de minorias etnicas, etc. , a ser emitido na mesma infraestrutura fisica - o cabo - mas fora do controle das empresas que o exploram.

Qual a escolha que temos em Portugal? Há um monopólio e vocês têm a escolha entre os canais que são oferecidos por radiodifusão e mais uns poucos canais escolhidos por este monopolio, incluindo, com custo acrescido, os canais que agora vão ser chamados de "pay per view".

Novo desafio: não seria interessante que uma nova biblioteca pública fosse um dos produtores de um canal tanto de internet como de TV cabo, para permitir ser um ponto de acesso público àqueles que não têm acesso às grandes empresas de produção, que não podem influenciar o conteúdo daquilo que aparece na radiodifusão e na televisão, podendo assim participar em programas dessa natureza? Este é um desafio concreto que se levanta.

Mas há um outro desafio: nós preocupamo-nos com o acesso e quanto falamos em info-exclusão pensamos logo que há pessoas que não têm dinheiro para comprar computadores, mal têm dinheiro para comer e para a casa, quanto mais para computadores, para além disso as suas prioridades são outras. Portanto há pessoas que vão ficar atrás do andar da carruagem e esta distância vai aumentar. Mas o que se está a passar hoje, como dizia uma professora do MIT, Louise Peattie, é que também há dinheiro a ganhar no negócio nos meios pobres. Por exemplo, há quem faça dinheiro a construir habitação social, tal como hoje há homens de negócio que descobriram que o consumo incentivado pelo uso de televisão, computadores e Internet, mesmo entre os mais pobres, é um mercado interessante, potencial, atractivo que não é para esquecer. Ate' porque há muitos pobres e grão a grão ...

Portanto, as empresas modernas têm interesse em estender o acesso à Internet mesmo àqueles com menos capacidades económicas e por isso começam a aparecer multiplas campanhas para o acesso livre à internet através de determinados "portais", ou mesmo, como existe nos EUA, onde até oferecem o computador. Mas qual é a pedra no sapato que está por detrás disso? É o incentivo ao consumo, via aquisição de uma audiencia captiva para a publicidade, ou mesmo obrigando o consumidor (reparem na palavra, em oposição a "cidadão") a se comprometer a longo prazo com consumos desta ou daquela marca, ou ainda a aceitar que todos os seus hábitos de consumo sejam registados e estudados por companhias de marketing -- e isto vale muito dinheiro hoje em dia.

Outra aspecto desta questão pode ser ilustrado com mais um exemplo.

Existiu uma associação em Portugal, chamada Terravista (que provavelmente vocês conhecem), que foi criada pelo Ministério da Cultura e que lançou uma iniciativa meritória para aumentar os conteúdos em português e que teve um sucesso muito grande: milhares de páginas em português feitas por estudantes de escolas secundárias e outros cidadãos a titulo individual.

Ora muito bem, às tantas houve um problema por causa de uma pagina de um miudo que continha un "link" para qualquer coisa pornográfica, e isso assustou os políticos que resolveram libertar-se de responsabilidades porque ora fechavam e eram acusados de censura, ora abriam e eram acusados de pactuar com pornografia. Eram atacados à direita ou à esquerda, perdiam de qualquer forma, qualquer que fosse a atitude. Qual foi a solução? Libertarem-se do Terravista, passando este a ser um grupo privado. E o que é que o grupo privado fez? Manteve-se como uma associação sem fins lucrativos por uns tempos, mas passado um ano depois vendeu-se por não sei quantos milhares de contos a um grupo comercial. E esse grupo comercial mandou uma mensagem a todos os utilizadores a dizer assim: "a partir do dia tal, na vossa página vão passar a aparecer anúncios dos nossos clientes".

E eu pergunto: mas com que dinheiro é que esta associação teve os computadores que suportavam as paginas na Internet? Foi com o dinheiro dos nossos impostos. Bom, eu li a resposta de um dos responsáveis desta associação que disse: "Mas esses computadores já estavam obsoletos, nós já comprámos outros, isto agora é muito diferente, compreende?"

Se é legítimo que alguem se possa apropriar de equipamento público desta forma, se foi isso que aconteceu, porque eu não conheço os detalhes e não quero estar a fazer afirmações taxativas, mas se foi isso que aconteceu, digam-me já onde é que eu posso inscrever-me para obter computadores nos ministérios, para depois, quando eles se tornarem obsoletos, eu poder comprar outros graças ao dinheiro que eu vou ganhar com esses computadores e depois digo que já não é equipamento do Estado. Mas o problema não é apenas esse, o problema é que o que dá grande valor comercial ao Terravista, não são os computadores que lá havia: são sim os conteúdos que nós todos fizemos e colocámos no Terravista, atraidos pelo caracter publico e pelas regras não comerciais vigentes (e agora traídas sem vergonha), porque são esses conteúdos que trazem visitas às páginas da internet e que valem milhares em publicidade.

E aqui voltamos à questão do acesso. Que é o seguinte: o problema não é apenas daqueles que hoje têm ou não têm acesso, o problema é que vamos eternizar, ou estamos em risco de eternizar, uma sociedade desigual no que respeito ao acesso à informação e às novas tecnologias. Há acessos de primeira, segunda, terceira ou quarta categorias: há uns que podem aceder nas condições que querem, quando querem, como querem e não têm que estar a aturar publicidade; há aqueles que têm que se sujeitar à violação da sua privacidade se querem ter acesso; há aqueles que podem ter acesso na condição de terem que se sujeitar a ver anúncios.

Pode-vos parecer exagerado mas há uma companhia de telemóveis que oferece cinco minutos gratuítos de conversação de telemóvel se a pessoa aceitar ouvir um minuto de publicidade dedicada exactamente ao seu perfil de consumidor antes começar a conversar. Pode-vos parecer chocante, mas eu pergunto-vos: É essa a biblioteca que nós queremos? Uma biblioteca em que temos equipamento adquirido, acesso, mas que depois tudo esta condicionado a sujeitar os utentes a publicidade obrigatoria?

Mais, em computadores de escolas nos EUA que tem computadores e leitores de video que foram oferecidos por grandes empresas mas em que os estudantes do ensino secundário dessas escolas têm que ouvir anúncios no equipamento televisivo que lhes foi oferecido. Faz parte do contracto. Entre os regimes que estão em funcionamento, há um em que os estudantes podem utilizar o computador livremente porque é oferecido mas são obrigados a ter permanentemente num determinado canto do ecrã um anúncio. E isto são estudantes do ensino secundário, jovens num ambiente em que deviam estar supostamente apenas a aprender, livres de influências e de manipulação de natureza comercial.

Ou pelo menos, esse era o nosso conceito anterior de sociedade em termos de educação e cultura publica.

Mas vocês não pensem que as bibliotecas serão sempre um reduto que vai resistir a tudo isso. Ainda ontem, quem é que imaginaria que os correios se iriam transformar num banco ou numa repartição de finanças, ou até agora também num terminal de acesso à internet. E amanhã sabe-se lá, talvez num supermercado como nas bombas de gasolina em que se pode comprar umas batatas fritas. Isto para uns pode ser um exemplo um pouco exagerado e ridículo mas podemos imaginar que amanhã os financiamentos das bibliotecas vão ser condicionados e temos que pensar no seu futuro. Que acesso queremos? Que bibliotecas queremos?

Portanto, o que está em causa é o conceito de acesso que nós vamos desenvolver, tem que ser pensado em termos de que sociedade queremos desenvolver. Será isto aceitável? Inevitável? Eu sugiro que não. Sugiro que se trata de uma situação muito simples e com alternativas reais - embora de resolução complexa. Há aqueles que neste instante têm poder económico, e esses adquiriram-no fruto de um determinado tipo de condição de desenvolvimento tecnológico e industrial. A revolução tecnológica põe em causa esse poder económico e altera-o. Não quer dizer necessáriamente que não seja para recriar outros pólos de poder económico. Mas neste periodo de mudança, de transição, temos a oportunidade de redefinir as regras do jogo, de baralhar e dar as cartas de novo.

Bill Gates era um estudante, abandonou a universidade, aparentemente um caminho arriscado segundo o senso comum da epoca, mas acabou por se transformar no homem mais rico do mundo graças, exactamente, à revolução tecnológica -- e sobretudo a explorar o vazio ou a inadequação das regras em vigor às novas realidades trazidas pela revolução tecnológica.

Não é necessáriamente um exemplo a seguir e portanto não é essa transformação que está em causa. Contudo, existem outros exemplos, como o facto de hoje ser possível fazer através da internet uma chamada de longa distância ao custo de uma chamada local. Isso só prova que nós estamos a pagar serviços telefónicos a preços exorbitantes, que não correspondem às novas condições de tecnologia disponivel, mesmo descontando o justo retorno de investimento na tecnologia. E não é por acaso que, no mundo em que prevalece a critica aos governos por demasiados regulamentos, são precisamente as grandes empresas de telecomunicações as primeiras a exigir do governo regulamentação que proíba que haja novas pequenas empresas que queiram construir comunicações de telefone usando software que permita fazer chamadas internacionais através da internet.

Isto mostra que há aqui um gato escondido com o rabo de fora. Ou seja, efectivamente nós temos possibilidades de desenvolver tecnologias de acesso que combatam a exclusão. Temos um potencial tremendo de construir uma sociedade de informação com características como nunca tiveram os nossos antepassados. Mas temos também as condições de poder continuar a ir atrás da estrutura adquirida e desenvolver numa sociedade cada vez mais desequilibrada, em que estamos muito preocupados com o conseguir dar um computador a cada um, mas esquecemos que se calhar esse computador é um "presente envenenado" nas condições em que vem. Não basta ter acesso. É preciso ponderar as condições de acesso.

Para terminar, um outro aspecto da minha intervenção. A questão, no fim de contas, da acessibilidade e da exclusão, costuma ser centrada (e eu próprio o fiz) em termos físicos, de equipamento, questões que têm a ver com o ter o computador, o acesso a infraestrutura. Mas o problema, como vocês sabem, é sobretudo cultural.

Não podemos distribuir computadores e esperar grande impacto se não damos condições de acesso à cultura e informação para as pessoas poderem tirar o melhor proveito dele. É obvio que as desigualdades continuarão a aumentar desta forma. Devemos também evitar ser paternalistas neste conceito. Por exemplo, o professor Melvin King desenvolveu um centro de reciclagem de tecnologia no qual recebe computadores usados e os distribui por bairros pobres e desfavorecidos de Boston, acompanhados de cursos de formação. Uma afirmação dele, que eu já ouvi em várias ocasiões, é a seguinte: "Não se preocupem tanto com a forma de as pessoas usarem os computadores, dêm-lhes equipamento e eles logo descobrem o que fazer". Isto é uma boa verdade. Há numa criatividade tremenda. Mas essa criatividade pode ser emperrada por razões artificiais devido precisamente a um tipo de restrições que são impostas pelos grandes interesses económicos instalados e que, efectivamente se nós pensamos apenas na questão do acesso físico, deixamos provávelmente uma porta aberta para que a nova biblioteca, e as novas estruturas construídas, o sejam com essas limitações.

Qual é o papel que uma biblioteca pública pode ter? Pode render-se às realidades de mercado, pode também pôr batatas fritas, pipocas e coca-cola para se financiar ao lado de computadores e livros, pode entrar-se na biblioteca e aparecer nas paredes, nas capas dos livros, nos ecrans dos computadores, que neste momento é financiado pela empresa tal, e que o leitor faria bem em antes, durante ou depois de ler o livro em ir consumir o produto quetal. Ou pode transformar-se num espaço de resistência e inovação, precisamente para um outro tipo de sociedade e um outro tipo de formação, baseado em valores de solidariedade e de responsabilização do Estado, enquanto gestor dos nossos impostos, por este "bem publico" que é o acesso à cultura e às novas tecnologias de comunicação. Penso que é importante que nós tenhamos pelo menos essa alternativa em mente. Isso significa não apenas apontar para a acessibilidade em termos de equipamento disponivel ao publico nas bibliotecas, mas também para uma biblioteca com serviços de apoio ao cidadão para que ele possa não só ter acesso à cultura e ao conhecimento que é o repositório natural de uma biblioteca, mas também saber aproveitá-lo da melhor forma. Saber exactamente libertar a sua criatividade para depois ele próprio encontrar a melhor forma de utilização das novas tecnologias disponibilizadas.

Um ultimo desafio: vocês pensam que estão a construir uma biblioteca de raiz, porque vai ser construída de novo pedra a pedra, porque há um terreno vago e podemos desenhá-la de forma mais inteligente, como o fizeram brilhantemente os arquitectos que apresentaram o projecto da nova Biblioteca Municipal de Lisboa. Mas a nova biblioteca traz consigo pessoas, instituições, departamentos e legislação. Isto vem tudo consigo, de onde estão as antigas bibliotecas e serviços, não é de raiz, e portanto pode trazer consigo também a velha inércia e assim transformar a nova biblioteca numa velha biblioteca, embora com telhados novos, equipamento novo e soalhos mais bonitos.

Mas construir uma nova biblioteca também pode ser uma oportunidade para um desafio de criar um novo dinamismo, aproveitando a dinâmica da criação de raiz da parte física, pretendendo inovar também em novas ideias, novas regras, novos métodos, nova relação institucional, novos serviços virados ao público, de apoio não só à formação de utilização dos computadores e da internet mas também apoio para como tirar proveito da cultura, como tirar proveito dos livros, daquele tesouro que está arquivado. De como transformar a biblioteca numa expansão da cidadania no mundo de amanhã.

Esses são alguns dos desafios que eu vos deixo aqui, como ponto de partida neste colóquio. Obrigado.



Bibliography

Castells, M. (1989) "The Informational City: Information Technology, Economic Restructuring and the Urban-Regional Process". 1989. Basil Blackwell.

Ferraz de Abreu, P. (2001), "Alguns Desafios da Educação em Portugal na Era da Internet e da Democracia Participativa", in Frias Martins, A.M. (ed). 2001. A Investigação Portuguesa: Desafios de um novo milénio, II Encontro de Investigadores Portugueses, Ponta Delgada, Açores, Setembro 1998. Universidade dos Açores e Forum Internacional de Investigadores Portugueses - FIIP, Portugal. 168 pages, pp. 13-22.

Ferraz de Abreu, P., Joanaz de Melo, J. (2000), "Introducing New Information Technologies in Public Participation: Technology is the Easy Part", in Ferraz de Abreu & Joanaz de Melo (eds). 2000. Public Participation and Information Technologies 1999. CITIDEP & DCEA-FCT-New University of Lisbon, Portugal. 599 pages, pp393-406.

Ferraz de Abreu, P., Chito, B, (1997) "Current Challenges in EIA Evaluation in Portugal, and the Role of New Information Technologies: -- The Case of S. João da Talha's Incinerator for Solid Urban Waste", in Machado, J. Reis & Ahern, Jack (eds). 1997. Environmental Challenges in an Expanding Urban World and the Role of Emerging Information Technologies. National Centre for Geographical Information (CNIG), Lisboa, Portugal. 538 pages, pp. 1-11.

Ferreira, Joseph Jr.. (1998). "Information Technologies that Change Relationships between Low-Income Communities and the Public and Non-profit Agencies that Serve Them," Chapter 7 in High Technology and Low-Income Communities. Donald A. Schön, Bish Sanyal and William J. Mitchell, eds., Cambridge. MIT Press.

Ferraz de Abreu, P. (1994). "PhD Thesis Working Papers", MIT, 1994

Kramer , K.L. and King, J.L. (1986). "Computing and Public Organizations". Public Administration Review, Special Issue on information systems in the public sector, November 1986, pp. 486-496.



Como citar esta comunicação:

Ferraz de Abreu, P. (2001), "Uma biblioteca pública numa sociedade de informação obcecada pelo mercado: desafios e oportunidades". Em 'Bibliotecas Publicas e Novas Tecnologias: Como combater a exclusão dos info-pobres?', Dept. de Cultura da Camara Municipal de Lisboa (ed.), 2001, 142 paginas, pp 9-17.


Outros Projectos CITIDEP : Kit Cidadania | Intelligent Multimedia System | Expo 98 | Regionet | Acesso Público a Informação Ambiental | ICPPIT99 | Info Tech for Grassroots
citidep@netcabo.pt visitas:

Introdução | Actividades | Investigação | Organização | Informação